“As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio.”
Franz Kafka, em O Silêncio das Sereias
Todos já ouvimos falar ou ao menos estamos familiarizados com a imagem de Ariel, a pequena sereia, personagem do conto homônimo de Hans Christian Andersen, popularizado pela Disney. Na verdade, as sereias fazem parte do nosso imaginário coletivo; não são mera fantasia para os pescadores de comunidades isoladas. Iemanjá, a deusa afro-brasileira das águas, é algumas vezes representada como uma sereia e as lojas de artigos de umbanda estão cheias de imagens de sereias sentadas em rochedos (eu mesmo tenho uma muito bonita no meu altar). Não é, no entanto, a essas entidades belíssimas com calda de peixe que a palavra “sereia” se reporta originalmente. Vamos conversar um pouco sobre elas?
A palavra sereia deriva do grego antigo Σειρῆν (Seirến), que não tem, até o momento, uma etimologia bem determinada, mas, segundo Junito de Sousa Brandão, em seu Dicionário Mítico-Etimológico, talvez o elemento primeiro seja o indo-europeu twer (encadear), presente na palavra grega σειρά (seirá), que significa corda, laço, armadilha, donde sereia seria aquela que enreda vítimas, sobretudo no mar.
Elas eram ninfas muito bonitas, filhas do deus-rio Aqueloo com a musa Melpômene (“Aquela que é melodiosa”). Apesar de seu canto alegre, Melpômene é a musa da tragédia… e isto talvez seja um prenúncio do trágico destino de suas filhas.
As fontes variam quanto ao número delas. Originalmente parece que eram duas, Partênope e Ligeia (que, inclusive, inspirou um famoso conto de Edgar Allan Poe); depois, os mitógrafos acrescentaram Leucósia às duas preexistentes, que também foram referidas como Pisínoe, Agláope e Telxiépia, em algumas fontes; por fim, quatro são mencionadas em textos mais tardios: Teles, Redne, Molpe e Telxíope.
Recrutadas por Deméter, uma das deusas da fertilidade, ligada à agricultura, para serem damas de companhia de sua filha, a donzela Coré, elas não foram capazes de impedir o sequestro de Coré pelo deus do submundo, Hades. Neste ponto, as narrativas míticas divergem. Alguns autores dão conta de que, mortificadas, elas imploraram aos deuses para que lhes dessem asas; assim poderiam procurar Coré em todos os cantos da Terra; já outros textos afirmam que elas foram amaldiçoadas por Deméter, que, enfurecida pelo sumiço da filha, transformou-as em almas-pássaro, destinadas a cantar para atrair os homens à morte.
Há ainda uma versão na qual teria sido Afrodite, a deusa do amor, e não Deméter a amaldiçoá-las. Nessa variante do mito, Afrodite lhes tira a beleza, convertendo-as em pássaros carnívoros e vorazes, por elas serem donzelas convictas, ou seja, avessas aos prazeres da carne.
Essa última variante aproxima as sereias de algo que elas representarão no imaginário coletivo apenas muitos séculos mais tarde — uma sensualidade atraente e perigosa que jamais é consumada; afinal, as sereias cantam para atrair homens em embarcações para rochedos que os farão afundar antes que qualquer ato de luxúria tenha a chance de ser cometido. Depois, restarão apenas corpos para aves de rapina.
Seja como for, o mito nos mostra que, ao contrário da figura metade mulher, metade peixe muito popular nos nossos tempos, as sereias originais eram, na verdade, metade pássaros; em lugar de guelras e nadadeiras, asas e penas, que simbolizam, em última análise, os perigos traiçoeiros do mar.
De onde, então, vem a imagem de uma figura humanoide com cauda de peixe?
Isso não dá pra dizer… simplesmente porque essa imagem está presente em praticamente todas as culturas do mundo, em todas as épocas.
Na própria Grécia, temos o deus Oceano, que é representado com uma cauda de peixe dupla, bastante semelhante à de Melusina, do folclore da Gália e dos Países Baixos. Também na Grécia, em um templo perdido na Arcádia, Pausânias nos fala de uma estátua de ouro de Eurínome, em que a deusa dos charcos era representada com uma gigante cauda de peixe; mas isso não é tudo…
Na antiga religião da Síria, temos a figura de Atargatis, que teria sido uma sacerdotisa humana alguma vez, mas, ao perder seu grande amor, cometeu suicídio e os deuses, muito tocados, transformaram-na numa entidade marinha, meio mulher, meio peixe. No Japão, há as Ningyo, que não são tão belas, mas portam o segredo da eterna juventude. Na Irlanda, existem as Merrows. Aqui no Brasil, a Iara. A Rússia as chama de Rusalka. Na Noruega e em parte da Escócia, Finfolk. Até entre os esquimós existe uma figura parecida, chamada Sedna. Nas ilhas do Caribe, Lasirn. Quase sempre belas e humanoides, com cauda de peixe, a lista de exemplos continua quase indefinidamente.
“Monomito”, provavelmente diria um seguidor de Joseph Campbell. Eu, particularmente, não sei… Segundo a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos, mais de 80% do nosso oceano ainda não foi mapeado, observado ou explorado. De fato, têm-se dito que conhecemos melhor a superfície da Lua do que o fundo dos mares. Quem sabe quais segredos ainda se escondem nas profundezas abissais?
É bem verdade que muitas fraudes já foram empreendidas e desmascaradas no que tange à existência de sereias. Em 1842, por exemplo, um homem chamado P. T. Barnum criou um falso esqueleto de sereia costurando a cabeça e o tronco de um macaco a um rabo de peixe. Ele a chamou de “sereia Feejee, alegando que teria sido encontrada nas ilhas Feejee, mas eventualmente a farsa foi descoberta.
Também o suposto esqueleto de sereia, encontrado na ilha de Mombaça e levado para Portsmouth, para ser investigado pela Philosofical Society, revelou-se apenas a ossada de um peixe-boi. Um peixe-boi, aliás, é que os pesquisadores advogam que era a suposta sereia avistada por Cristóvão Colombo, em 1493. Colombo escreveu: “Não tão bonita como disseram que era, pois seu rosto tinha alguns traços masculinos”. Não há, porém, como ter certeza…
Voltando para a Grécia, numa humilde vila de pescadores chamada Skala Sykaminia, na ilha de Lesbos, há uma pitoresca igrejinha em cima de um rochedo, voltada para o mar. Nela, havia, até algumas décadas atrás, um afresco pintado por um artista desconhecido, retratando a Virgem Maria com uma cauda de peixe, segurando um barco numa das mãos e um tridente, símbolo da realeza do mar, na outra.
Ninguém sabe ao certo por que a santa foi retratada dessa maneira, mas uma lenda local dá conta do seguinte: em um dia que ameaçava tempestade, um pescador endividado demais para se dar ao luxo de não trabalhar partiu para o mar. Atingido pela fúria das águas, ele perdeu a embarcação, que se chocou contra um rochedo e afundou. Vendo de perto a face da morte, ele clamou por Nossa Senhora. Foi Quando uma sereia surgiu das águas segurando um tridente e o levou para terra firme, em segurança.
A igrejinha de Skala Sykaminia, dedicada à Nossa Senhora Sereia (sim, o nome é esse mesmo!), teria sido construída após esse episódio, como símbolo da gratidão do pescador.
E você, acredita em sereias? Que segredos acha que as águas escondem? Conta pra mim nos comentários!