Conta a lenda mais conhecida que Iara era a filha de um poderoso pajé. Ela tinha dois irmãos, mas se destacava por sua bela voz, que encantava a todos, e por suas habilidades excepcionais como guerreira. Seu pai, o pajé, era só elogios. Todos a amavam… exceto seus irmãos.
Esses tinham muito ciúme de Iara. Ela era uma mulher e tinha mais reconhecimento que eles. Era melhor guerreira e, a julgar pela maneira como todos a tratavam, melhor companhia; um absurdo inaceitável! Assim, cegos pela inveja, eles decidiram matá-la.
Certo dia, quando voltava do rio, Iara foi surpreendida por seus irmãos. Eles tinham uma fúria assassina nos olhos e ela logo entendeu que estava em perigo.
Iara tentou fugir correndo para a aldeia, mas isso não foi possível. Seus irmãos não estavam dispostos a deixá-la ir, tampouco aceitariam falhar naquela empreitada perversa. Ela foi obrigada a lutar e, como era melhor guerreira, acabou derrotando a ambos… Não apenas isso, quando deu por si, havia se defendido com tamanha garra que seus irmãos estavam mortos; eles, que queriam matá-la, agora jaziam sem vida…
Você pode pensar: “certo”, não é? Justo.
Não foi assim, contudo, que o pajé, pai de Iara pensou. Quando chegou ao local da peleja e viu os corpos dos filhos, não aceitou explicações. Iara tentou se defender, dizendo o que havia acontecido, mas o pajé permaneceu insensível aos apelos da filha. Ela foi amarrada e levada para a aldeia, onde um pequeno julgamento aconteceu. Iara foi sentenciada à morte. Seu próprio pai mandou que a jogassem nas águas, na pororoca, o encontro entre os rios Negro e Solimões, para que morresse afogada.
Assim foi feito. Iara foi atirada às águas e se afogou.
Foi Jaci, a mãe Lua, que a tudo assistia do seu camarote no céu, quem se apiedou da moça injustiçada. Ela conhecia a verdade, sabia o que havia acontecido e resolveu amadrinhar Iara. Assim, por sua intercessão, a índia voltou à vida; não mais como índia, mas como uma entidade das águas, metade mulher, metade peixe.
Depois disso, Iara se tornou guardiã dos rios e nascentes, protetora dos peixes e animais aquáticos, mas ela parece guardar algum ressentimento da figura masculina (e não sem razão, né?). Com seu canto, atrai e seduz os homens, para, em seguida, deixar que se afoguem ou aprisioná-los em seu palácio, no fundo das águas.
Tal é a história mais conhecida da sereia brasileira, mas, apesar de sugerir que a Iara é um mito indígena, historiadores e pesquisadores contemporâneos sustentam que, na verdade, ela seria uma junção de lendas europeias (sobretudo portuguesas) indígenas e africanas. Trata-se, portanto, de uma legítima lenda brasileira, surgida da miscigenação étnica e cultural que é a verdadeira matriz do nosso país.
Câmara Cascudo, em seu livro Geografia dos Mitos Brasileiros, fala das tradicionais sereias, como já as conhecemos, e de uma assombração específico de terras lusitanas — as mouras encantadas.
Essas seriam as filhas de reis e príncipes mouros deixadas para trás, sobre as quais recaiu uma maldição. Elas guardam os antigos locais de domínio mouro, seus segredos e tesouros, cantando para atrair cavaleiros para libertá-las ou, de outro modo, até que os mouros voltem a dominar a região.
As sereias e mouras encantadas, unidas num mesmo personagem, teriam se unido a um terceiro elemento, este de fato indígena; uma espécie de fantasma aquático, assassino de homens, chamado Ipupiara.
O ipupiara (do tupi ïpupi’ara, “monstro marinho”) é uma criatura habitante das águas, que, segundo os relatos, ataca pescadores, lavadeiras e todos os que se aproximam do seu habitat natural — os rios —, matando-os afogados para depois devorá-los.
Embora guarde com as sereias europeias a semelhança do habitat aquático e da metade peixe da cintura para baixo, o Ipupiara em nada se parece com as belas e sedutoras entidades do outro lado do oceano. Eles são quase sempre figuras masculinas, de aparência medonha (será que foram ipupiaras o que Colombo avistou no mar, a caminho da Europa?).
Os indígenas, contudo, referiam-se a outra entidade como “Mãe d’Água” e não foi difícil para os portugueses, que não eram lá muito conhecedores das culturas originárias, associarem “Mãe d’Água” ao Ipupiara e, por fim, às suas próprias lendas marinhas — as sereias. Foi assim que surgiu a Iara, talvez com algum tempero extra de divindades aquáticas africanas, como Oxum e Iemanjá.
Dessa relação sincrética surgiu não apenas a Iara, mas também outro famoso personagem do folclore brasileiro — o boto cor-de-rosa.
Os índios, na verdade, tinham um conceito bastante mais abrangente que o nosso de mãe. Chamavam de mãe a lua, a floresta, os rios etc. Em algumas regiões, “Mãe d’Água” era uma cobra gigante, personificação do próprio rio; em outras, era apenas um eufemismo para a própria ideia do rio e das águas, que nutrem e fertilizam a terra.
Por hoje é só. Espero que tenham gostado e, mais, que estejam gostando do especial Mistérios do Mar, porque ainda tem muita coisa bacana pela frente!
Forte abraço e até a próxima!
Boa noite, Mikka
Tem um outro elemento que serviu para divulgar as lendas da Iara. Monteiro Lombarto. E também para transformar de um ser temido para algo +/- positivo. Quando agradado.
Muito bem lembrado! Monteiro Lobato, em suas histórias, foi um grande divulgador não apenas do folclore brasileiro, mas também da mitologia grega.